Mãe,
Faz-se tarde, e não quero deixar-te sozinha.
Mãe,
Faz-se noite e o luar não te faz companhia.
Mãe,
Faz-se dia, e o sol não te abre o caminho.
Mãe,
Faz-se dia, faz-se noite, faz-se tarde, faz-se longe,
E eu vou ter que ficar aqui sozinha…
Mãe,
É estranho, afinal não estou sozinha,
Eu tenho tudo,
O dia, a tarde, a noite, a lua o mundo
o sol a vida, os meus, os nossos,
Mãe,
Afinal tenho apenas saudades

E faz-se longe, e faz-se perto...

Chimamanda Adichie: o perigo de uma única história TED



Bi Kyklos


Dois Kyklos.
Vou dizer assim porque sei que vais gostar desta palavra.
Pergunta à mãe, quer dizer duas rodas.
As rodas gémeas que estão unidas para nos levar nas primeiras aventuras do corpo equilibrado em movimento, depois da grande aventura dos primeiros passos.
Dois kyklos  que fazes correr quando rodas os pedais.
A mãe contou-me essa tua grande proeza deste fim de semana que me deixou toda derretida.
Eu disse-lhe que estava muito orgulhosa.
É que já dás a volta inteira.
Depois de muita teimosia tua os teus pés não se descolaram e deslocaram os sapatos mágicos que giraram por completo na dança frenética, que tomou conta da rua inteira e deixou os papás todos babados.
E os teus pés ganharam  vida  agarrados aos outros que se deslocam com a tua energia.
Da Vinci, Lu Ban, ou o Barão Drais, pouco importa.
Quadro, roda, aros, raios, guidom, garfo, selim, pneu, corrente, câmara de ar, guarda lamas, ficaram no nosso imaginário onde cabem histórias que podes ouvir de todos os membros da tua árvore da família.
Chica, Burra, Byque, Bici …
Os tios, os primos, vão contar, e mais as outras dos avós e manos, e amigos, e vizinhos, que falam de tudo e de assuntos que conseguem acompanhar, crianças, jovens e mais velhos. Canucos e cotas todos juntos na mesma viagem.
De tempos de barriga contente e de barriga vazia, ou apenas enganada. Daqueles assuntos que cabem todos em apenas dois kyklos que percorrem asfaltos, poeiras vermelhas e de outras cores e fazem sorrir vidas.
A corrente que saltou, os raios onde se prendeu o pé, o selim onde não se conseguia ainda chegar, o quadro de menina ou de menino, onde vai dar para levar alguém à pendura, as mãos cheias de óleo porque a corrente saltou, a câmara de ar que mergulhou  na água para rever o remendo colocado a preceito porque o pneu furou nos caminhos que não vamos contar à mãe, o garfo que não estava direito e ficava  tudo empenado, o guidom que se girou para parecer de corridas e que vai dar um sainete, os guarda lamas que numa história do Ondjaki que a mãe te vai falar, até virou bigodes, e a campainha; tquase me esquecia de falar  na campainha, mágica de tocar só para fazer banga!
E os caminhos?
Todos vão ter histórias dos caminhos para onde correram os sonhos com dois kyklos, as duas rodas mágicas que já fazes correr nos teus próprios caminhos.
Parabéns Isaac. Estou mesmo muito orgulhosa.
Hoje acordei agarrada ao vento fresco do movimento da tua volta inteira que já deste aos pedais e te levam os joelhos quase ao peito, e pude voar contigo.

Pedaços de ternura nas férias com o Luís... já foi a Paris...

Ainda nos pedaços de ternura destas férias com o neto, numa viagem a Paris a trautear esta ainda dos clássicos.
Esta era mais uma que me pedia para repetir
...O Luís, o Luís... já foi a Paris.
Deixo aqui mais para ele a canção completa, porque eu só lhe cantava o refrão e ele vai gostar de saber os pormenores da viagem do Luís, que cantamos juntos vezes sem conta...
O Luís, o Luís, já foi a Paris...
 
Pedaços de ternura nas férias com o Miguel de olhos de mel.

Esta serve só para ilustrar a minha dedicatória de hoje ao meu Isaac.
É que não posso deixar de vos contar como ele ficou maravilhado com esta sonoridade mas mais ainda, como achava sobretudo piada aos olhos de mel, pois na imaginação dele não era uma figura, eram mesmo uns olhos de mel que existiam em alguém.
E eu tentava o alcance daquele mel que só ele conseguia ver e lhe acentuava as covinhas da face com o sorriso quase malandro e deliciado com que acompanhava: - Lá vem o Miguel dos Olhos de Mel, quando repetidamente me pedia para eu lhe cantar o Miguel dos olhos de mel.
Conseguem mesmo imaginar o mel nos olhos? E é o mesmo que o Isaac consegue ver?
Deixo-vos com esta delícia que me prende o coração à magia numa viagem que só ele é capaz de me transportar. ... Lá vem o Miguel dos Olhos de Mel...
 
Estavas na nova casa a cheirar a sol.
Gostei de ver o verde a atapetar todo o corpo do quintal
Era um quintal de arcadas que faziam do corpo da casa onde habitavas o sétimo piso, duma mansão em forma de torreão a avistar o doce Tejo que quase te vinha beijar os pés.
Gostei de ver os pequenos arranjos ao teu jeito e o desvelo de quem cuida da sua propriedade.
Gostei de ver que quase em passe de mágica conseguiste salpicar o ar do quente cheiro de lar.
O teu.
Gostei de ver, e do passeio pelas veredas do prado de onde alcancei mundos com o olhar de dentro do peito.
Depois veio a conversa saborosa que cavalgou da contracapa dos livros da Anita, para as histórias de nunca acabar que nos levaram até ao mistério dos enigmas, o valor do trabalho de equipa, a coragem e a sabedoria, o  Fort Boyard, onde cresceram os vossos sonhos. 
Escutei-te quase já sem te conseguir ver com a névoa teimosa da emoção a fazer outro brilho no fundo escuro dos meus olhos onde couberam todos os passos e vozes e cheiros e medos ,suspenses e risos que vinham dos livros e da caixa mágica à frente do sofá da sala onde cabiam os nosso corações.

Gostei deste novo começo.

sábado de família


O sábado trouxe o aconchego da família desta vez na nossa casa.

Esbanjou, encheu e preencheu de brilhos em formas de sorrisos a pintalgar em ritmo de sembas todas as paredes, que deixaram as marcas que me vão bastar e fazer a conversa de todos os mugimos que surgirem até ao próximo encontro.

O telhado ficou baixinho a acariciar-nos as cabeças feito protector e pai gerador do quente da barriga daquela sala que cresceu para acolher todos e alargou as ancas para fazer até quintal de todo o resto da casa onde corriam os candengues, já vindos dos mais novos da última linha.

Estávamos de novo a partilhar as últimas.

O filho que regressou, a mana que se espalhou, a sobrinha que alcançou.

- Podem mesmo abrir os sorrisos sim, é por graça mesmo, mas vou traduzir;

O filho não aguentou a distância e atirou-se para os braços do incerto na firmeza da coragem que determina a certeza rodeada dos afectos lhe fará superar a dureza da distância.

Isso mesmo!

A mana apanhou piso molhado e levou um susto daqueles que lhe fez esconder o episódio mais de uma semana, que lhe revirou o carro, e lhe fez ver de repente o mundo virado ao contrário, ainda para acrescentar que estava com o bebé e a cena tomava assim proporções de gelar os trópicos.

- Assim resolveu só contar agora, para não preocupar.

A sobrinha alcançou, já tínhamos mesmo brindado, só que agora, com as costuras a já não aguentar o tamanho, do mais novo anunciado, foi de novo motivo de alegria e de renovação de brindes a cada instante de só olhar.

- Eram os momentos do saber da continuidade!

A falta de alguns, justificada pelos motivos que só davam alegrias aos restantes, fazia assim deles igualmente presentes.

O almoço era reconforto, bagre trazido do sul a aquecer a mesa, pipis bem apurados, calulú acanhado um pouco mal sucedido no olhar de que se habitua a vê-lo instalado a nos grandes tachos costumeiros que agora não podiam estar.

O remate estava nos doces de cada especialista que sabe de cor a matéria de que são feitos os gostos de cada um.

O resto era o não caber de alegria e do prazer da comunhão

Sábado de família, desta vez o telhado quente a acariciar as nossas cabeças nestes nossos momentos, certos do calor do legado que preservamos.

 

no regresso

Quando cheguei engoli-te inteira e grávida de ti me vi

Então te pari estrada minha, de esperança concebida
no corredor estreito e escuro da sucessão dos dias e das noites 
agora viva, tida inteira e verdadeira

Desfolhei-te nua clara negra cheia mansa  lisa 
lua noite brilho encanto e doce apelo
desflorando, cavalgando a madrugada

Percorri-te à luz dourada dos caminhos flamejantes 
mergulhei-te na volúpia em quadros quentes vibrantes
amei-te no fulgor de nova vida prenhe e fresca a serpentear
Assim me vi colada às veias e nervuras do teu corpo
no curso do teu sangue pulsante a marcar o ritmo incessante e quase insano
sincopado sinuoso e gingado que te saltava em gargalhadas incontidas do teu peito
Senti-te ao toque ao tímido desejo no arrepio e conchego 
no som inebriante em travos longos e vorazes de delírio e de desejo
no repouso adocicado da chama purpúrea do teu colo 

Inalei em golfadas todo o ouro que exalavas ao meu redor aos borbotões.
E na geometria desconcertante  das tuas linhas finas e rudes
bebi o cheiro o mel, unguento, transbordante o alimento da minha alma sedenta 
na assimetria das paredes do teu corpo, o ardor, o calor picante, o gozo o mosto, o gosto                                    
fez guião a estrela o horizonte, trave, tábua, o pão repasto da minha carne faminta

Assim apaziguada te desenhei em novo mapa
Esculpi-te no sabor que deslizava num saber sussurrante
que aumentava o ritmo, galgava as margens erguia as velas e tomava o leito
marcava a cadência incessante  de uma dança iniciática
no clarão da explosão de êxtase e plenitude

E pintei de novo as ruas, tuas formas de passados em novos presentes
moldei-te nos contornos do futuro certo no errante do balanço
onde te achei no recente rítmico ziguezaguear de costuras renovadas
Quis voltar e tomar-te de novo estrada minha

salvo conduto

O filho deixou-me o salvo conduto
de forma transparente feito romance
com uma recomendação do seu conhecimento
e efectiva propriedade
para a transição para sul.
Assim o cumprirei.
Do início, o prenúncio da genialidade
através do bilhete amarrotado de Odonato:
"acabou o tempo de lembrar
choro no dia seguinte
as coisas que devia chorar hoje"

(Sobre os transparentes de Odjaki)