decifrem lá... é a tradição!...

a nossa música conta as melhores estórias
fala mesmo como nós somos

comboio mala

viajar na memória do comboio mala

memórias

verdes anos

verdes anos

seguiremos
hasta siempre comandante

havemos de voltar

colada à pele

das memórias a memória

carta de um contratado de antónio jacinto

memória de afectos
na boca e nas palavras dos poetas
na mente dos amantes
nos sonhos dos sonhadores


este pedaço apanhei no reencontro
galguei caminho passei a ponte e peguei-te a tempo
então ao desfiar momentos e desalihnos de memórias
ao saborear estorias de vitórias e desvendar caminhos
apertamos juntos os espaços partilhados
acarinhamos e guardamos connosco as venturas
das muitas guardadas eis algumas que vos deixo
estas as da última passagem

a esperança é sagrada

a esperança é sagrada porque me despertou o espanto
e foi sagrada quando me determinou o espaço
foi sagrada quando me arrancou do mutismo do luto
a esperança é sagrada porque me iluminou o caminho
num tempo em que me pudeste esculpir a forma do destino
e quando me deixei levar pela poesia e os sonhos de lutas desiguais de almas
e me fizeste mergulhar-te e embriaguei entregando a vida e a forma de sentir-me
vivi-te como vida e forma de ser
empoleirada nos teus pés calosos de saber
e assim me fiz em forma de poeta de vida
só porque acreditei na sagrada esperança
em jeito de esperança sagrada
um dia destes apanho balanço e começo a colocar imagens do baú.
tenho umas coisitas ainda por aí.

agora, uma musica do antigamente que eu aprendi de cor e cantáva aos miúdos...

106769

foi um toque acidental. atendi, não sei como mas dei conta e só estava a vibrar à conta das muitas avarias que o zac fez.
a mana não tinha atendido o mano também parecia ter o móvel desligado... afinal sempre tinham forma de comunicar através de mim.
mas foi bom. do outro lado depois de então tudo bem e essas coisas, esperava-me uma boa surpresa. a seguir dum ainda te lembras?
hum, claro que sim. como não? era o 106769. gravei-o de tantas vezes ouvir chamar pelo altifalante do quartel...
caso único o "castanho" como o tenente trindade entretanto o apelidou. o mesmo tenente que o apadrinhou, lhe safou da teimosia em se "desenfiar", e gozar do prazer da liberdade fora do quartel que não era mesmo a sua praia.
a sua, era mesmo a verdadeira depois da noite em claro nas boites de luanda.
era o nosso herói que só conheceu o quartel dentro da prisão.
na formatura não cabia. messe só de oficiais merecida pelas baladas e poemas que compunha para oferecer às senhoras de visita.
chegava com a mala cheia de livros, e trazia-nos as estórias de caserna mas daquelas viradas do avesso, fora dos clichés. não ía à mata, então era de compor músicas e fazer poemas, darem-lhe um turra para ele fazer a guarda e ele acabar preso por comer com ele à mesa, estórias assim desiguais às dos outros tropas.
a viola debaixo do braço era a sua arma.
pujança de palanca de ateleta que o faziam ir do golfe aos coqueiros para o treino,em menos de nada, só com a ajuda daqueles quedes com pregos em baixo que eu conheci nessa altura.rimos, e trocamos lembranças, então e falou que tinha sido a mãe a ensinar-lhe a dançar o tango. e ficou espantado das coisas que ainda recordávamos. claro que eu não podia ter deixado de lembrar aquele caso que hoje ainda contamos aos filhos.
o amílcar como sempre pela tardinha ía-se desenfiar. saíu da caserna, e atravessa a parada num sprint que nem deu tempo ao sentinela para reagir. nesse entretanto já tinha tomado balanço e chegava ao cimo do muro do RIL antes do soldado lhe fincar na mira e dar-lhe ordem para recuar. aí ele não foi de modas virou-se, e empoleirado arreou as calças e bradou para o outro que lhe apontava a G3: o buraco já está feito podes atirar. foi neste flash que o soldado gelou de espanto e sem reacção lhe deu tempo suficiente para em menos de nada estar do outro lado a sacudir o pó da farda na direcção da praça de touros a balizar o calemba que rumava para os nossos lados.
mas depois havia ainda outra surpresa. era a prima alice.
ela também lá estava e há perto de trinta anos que não falávamos, a mãe da Guigui. a minha prima guigui. falámos de todos, dos presentes e já ausentes. lembrámos o tio que deu o nome ao nosso mano, com os seus suspensórios e a assobiar logo pela manhã, "ho lairia, ho lairia!", é assim que o recordamos...
perguntei por todos, ditinha, jójó e marilu. a prima em faro já reformada das análises. o primo pina perto, em portimão. prometi então desafiar-me e encurtar um dia destes a distância e rumar até aos algarves.

dia de reis

hoje trocamos as voltas ao calendário
foi mesmo num sem querer
entrei na pastelaria só para comprar o pão fresco do dia
já a noite entrava e tinha abrandado a chuva que todo o dia
marcava os tempos em um compasso frenético.
para uma chuva que quase se estreia em temporada,
veio com a força estrelante num grande espectáculo.
cheirava a doce quente. com cores em desfile.
o sorriso jovem simpático masculino do lado de lá dos sabores
espreitou-nos, e depois do habitual mafrense fatiado,
aquele... e que mais?, guiou-nos os passos do olhar
para três pares enfileirados de autênticas grinaldas douradas
ostentando o brilho de pedrarias enormes encimando-as reluzentes.
se os olhos compraram a mão só teve que trocar a nota já sem significado
pelo par quente já por baixo do saco pardo.
o mafrense e o rei.
depois a festa.
a mãe esquecida das dores dos dias e da abstinência ditada pela doença
pedia mais, e os lábios trémulos delisaram pelo aveludado do porto alegre
é este mesmo o nome. porto alegre.
e depois junta-se-lhe um tawny, o do requinte.
pois foi com requinte e sobretudo prazer que hoje lhe trocamos as voltas
e festejamo os reis num dia qualquer de novembro já frio e de chuva.

afinal hoje já era fevereiro

estou sempre à espera do fevereiro mãe,
daquele fevereiro distante e próximo
que um dia promeste levar-nos de volta ao sul
acreditaste com tanta força que dessa força
veio a esperança que em nós perdura
de em fevereiro próximo voltarmos ao sul.
era lá para atrás da linha azul
da estrada serena do oceano aberto
que descansava longos dias em espera
por detrás daquela janela de hotel
que acreditamos poder estar num em breve
e sempre, sempre à espera do fevereiro mãe.
hoje mãe, hoje queria lá estar.
queria desapertar este sufoco de dor
deste colete de aperto quente que me tolhe e quebra
queria descolar este sorriso e iluminar o espaço
guiando o teu caminho com o escuro do meus olhos
queria estar lá contigo mãe.
mas acreditas que a tua força de acreditar
me acordou num repente e só então percebi mãe
que afinal hoje já era fevereiro
as acácias floriam ao nosso redor,
o doce e forte odor da terra invadia-nos de vermelho
e podias então levar-me pela mão novamente
conduzida pela tua forte força de acreditar
que afinal hoje já era fevereiro.
Foram doze dias intensos a colar pensamentos amarelecidos. não passou do outubro.
alguns um pouco desfeitos, outros mais maduros e ainda outros ainda com a força quase juvenil.
colei-os num folego como temendo perdê-los.
entretanto, outros já se sobrepuseram e recoloriram as nossas vidas.
já vivemos revivemos, sonhamos e desonhamos. muitas colagens haverá ainda que trabalhar pois já somam tantas.
estas fazem parte de nós e desta vivência que sempre surge nas conversas dos almoços de dia inteiro a entrar pela noite, com os choros e gargalhadas cristalinas dos bebés, os gritos da miudagem os muxixos, mugimos, ou curibota a preencher o ambiente, sempre com a música de fundo garantida pelo eleito de sempre a quem já cabe o estatuto.
aqui longe do sul estica-se o mais que se pode o verão no quintal, para se comentar debaixo do abacateiro que se fala nunca mais dar filhos mas que tem boa sombra sim senhor. dos frutos que de jeito só mesmo o limoeiro. mas com justiça, a goiabeira até se esforça, o sabor dos seus frutos faz-nos transportar, embora não consiga encher a palma da mão do bebé mais novo. nascem mesmo em miniaturas.
quando não dá mais para inventar o sol e os mais velhos já não podem aguentar lá fora temos que eleger a sala maior. transportar o maior número de cadeiras e até inventar com tábua e dois dois ou três bancos de base a fazer de banco corridos que dá sempre para mais. as cadeiras de verdade ficam para os mais velhos.
e renovamos votos, recomendamos, ouvimos, chamamos à razão, damos satisfação, discutimos e celebramos os dias.

as cores dos sonhos - IV

era o homem dos tecidos. era assim pelo menos que o chamávamos. mesmo a mãe, ainda que alguma vez tivesse sabido o seu nome, nunca o tinha pronunciado.
ele vinha simplesmente e entrava nas nossas vidas colorindo-as e desafiando a imaginação da mãe que com a ajuda de burdas velhas emprestadas, fazia de nós modelos invejáveis.
mesmo quando nos habituámos a apanhar o 15 ainda de cor verde e passar pelo n´gola cine em direcção ao S. paulo, para encher os olhos nos grandes armazéns da gajageira, onde se multiplicavam os cortes, os actores e as cores nos confundiam como luzes de palco, a mãe continuou fiel ao homem dos tecidos.
e na grande arca de latão em que se guardava os lençóis e colchas que não se usavam todos os dias, que tinha um tampo por cima, onde a mãe tinha a gargantilha e os brincos brilhantes, a mantilha da missa, a écharpe brilhante, a carteirinha de lantejoulas de ir a casamentos, e a caixa de chocolates onde guardava as fotografias antigas, a mãe guardava sempre alguns cortes de fazer inveja e que faziam parte das suas relíquias.
Às vezes tentávamos surrupiar algum, para a mãe fazer um vestido ou uma blusa para nós, mas a mãe não ía nisso. Dizia sempre que estava guardado para fazer qualquer coisa para a qual ainda não tinha encontrado o feitio certo. E um tecido tão bom, não se estragava com um feitio qualquer...
alguns desses cortes chegaram a vir para portugal e a mãe não deixou de talhar um vestido para estrear no natal, mesmo cosido à mão, matando as tardes de um futuro incerto, com o olhar a galgar através do vidro o atlântico na procura do impossível, no 214 do hotel paris, nas vésperas do natal de 75.


99.07.07

as cores dos sonhos - III

entrava agora em cena, com a arte e grande sabedoria de um grande vendedor. retirava os cortes coloridos que lhe deslizavam pelo braço, repousavam no seu ombro com a luz do sol a trespassar provocando reflexos de arco-íris, ou caíam levemente com a sensualidade do escorregar num corpo nu, na mala escancarada depois de saciarem os olhares dos presentes.
passavam as sedas, os gorgorões, os tafetás, as caxamiras e os cetins. os algodões, os veludos, os terilenes, casquinha-de-ovo, ou tevês.
a mãe pegava-os e de forma cuidada fazia a sua selecção, imaginando as formas e os fins, e matematicamente os recursos.
os terilenes para as calças, os mais finos para os nossos vestidos e blusas.
o pagamento, embora fosse em pequenas e suaves prestações, aos bochechos, como dizia a mãe, tinha que ser bem pensado, estávamos todos a estudar e os mais velhos estavam na escola técnica.
e daquela mala saíram as roupas para estrear no natal, na passagem de ano, na páscoa, que sempre davam depois durante todo o ano, para fazer boa figura nas ocasiões mais especiais, ou simplesmente na missa de domingo.
era também no natal que comprávamos os sapatos paara estrear com a roupa nova e que davam na maior parte das vezes para todo o ano, porque era sempre possível dar à volta à teimosia do nosso corpo em não respeitar os bolsos, e crescer demais. E aí, era fácil, o pai ou a mãe cortavam os bicos para os dedos não ficarem apertados e até dava um novo feitio.

as cores dos sonhos - II

atravessava o grande quintal onde normalmente descansava a berliet tramagal do pai depois de cada viagem. batia as palmas, qual pancadas de molier.
a mãe saía da cozinha de pois de passar as mãos pelos cabelos e de ajeitar a bata de todos os dias e recebia-o com um sorriso rasgado. nós seguíamo-la e ocupavamos os nossos lugares em torno dele.
era então que começava o espectáculo.
depois de grandes cumprimentos, pousava a grande mala no chão de cimento ao pé do gindungueiro que ficava no topo do canteiro enfeitado de zínias e onde se passeava e se escondia o malandro do cágado, e num passe de mágica puxava com a ajuda dos dois polegares os fechos metálicos para os lados abrindo a mala dos sonhos com um estalido.

as cores dos sonhos - I

macias, leves, de várias cores.
saíam de dentro da cartola do mágico e faziam a minha delícia.
saltavam de dentro dela e deslizavam-lhe pelo braço.
Subiam e desciam como serpentinas, escapavam-se, multiplicavam-se e enchiam o espaço de cor e fantasia.
Tinhamo-nos habituado a ele. ele era a parte mágica do sonho que enriquecia o nosso mundo, lá no bairro.
vinha quase sempre a meio da manhã, durante a semana, já depois de ter calcorreado as estradas poeirentas dos bairros e muceques vendendo os sonhos de porta em porta.
não fazia qualquer pregão. chegava sem se fazer anunciar.
a surpresa também fazia parte de todo aquele quadro.
andava já pela casa dos cinquenta, era de estatura média, uma figura que passaria despercebida não fosse a mala de cartão grosso, castanha escura, como o fato coçado que trazia, a imitar o couro, pesadíssima, que transportava consigo.

agarra que é gatuno - VI

a maca continuou até à hora em que os rebentos de sol se tinham agigantado e transformado em ramos fortes aquecendo o ar, lembrando que já era mais que hora dos homens saírem para os empregos e as crianças para a escola. o tempoi de manhã passava depressa e logo logo, as mulheres deveriam ter o almoço pronto para os seus maridos e filhos. se bem que a cdriadagem já tivesse largasc recomendações nesse sentido. à essa hora no céu o sol como um grande imbondeiro obrigava a que largasse os sapatos à entrada de casa se ligasase a ventoinha e se refrescassem as gargantas secas com o estender do braço para a porta da geleira instalada na sala, procurando a bebida mais à mão. assim, um a um, roupão ou bata simples, iam para suas casas dada a hora adiantada.
a mãe limpou as palmas das mãos suadas nas ancas redondas e levou-nos para dentro. o pai acompanhou-a em silêncio.
a polícia não encontrou o ladrão. também ninguém ousou acusar-nos directamente porque afinal o pai sempre gozava do estatuto de mulato filho de branco, e por outro lado o vizinho senhor polícia não ía encobrir caso fosse verdade, não é?...

maio de 85 / Março - Abril de 99