agarra que é gatuno - V

neste momento, já os polícias tinham desaparecido com grande estardalhaço numa nuvem vermelha no jeep desengonçado deixando-nos a morder a poeira.
passou muito tempo para que eu viesse a perceber que não tinha sido por acaso que as pessoas se tinham juntado ao fundo do nosso quintal e diziam ter visto o ladrão fugir na direcção das nossas casas. para eles o autoir do roubo era alguém que ali morava. - ora, o nosso vizinho, senhor branco, que ganhou as divisas pela comissão em áfrica e que agora corria o ano de 68, até já era sub-chefe da polícia, era impossível que fosse, excluía-se portanto à partida. restávamos nós claro. então era isso, é que naquela altura na última rua do bairro, éramos os únicos a quem a mãe natureza tinha presenteado com uma cor diferente dos demais. os nossos iguais, amontoavam-se no calemba, o muceque a seguir à vala. daí que o dedo grande acusador apontasse naquela, na nossa direcção. a mãe estava comprometida e mal podia disfarçar a sua revolta. ela já pedia a todos os santos para que encontrassem o gatuno.

agarra que é gatuno - IV

as pessoas gritavam: - é ele, é ele o gatuno, o filho da puta do preto!
eu bem tinha as minhas razões, dizia alguém, eu vi-o com estes olhos, fugir na direcção do campo de golfe. armou-se tamanho burburinho que os madiés da polícia tiveram que intervir.
tantavam acalmar os ânimos, e após algum tempo, não escondendo uma certa frustração, explicaram a custo que se tratava de um equívoco.
aquele indivíduo fora encontrado em estado de completa embriaguês e eles tinham-no feito acordar, explicaram. tratava-se apenas de um caso de rotina.
embora lhes apetecesse saciar aquela gente faminta que já tinha prometido fazer justiça com as próprias mãos, deram o seu ar de importância esticando novamente as fardas, e prometeram que haviam de encontrar o ladrão.
notei que as pessoas se encolheram um pouco envergonhadas mas num ápice desculparam-se erguendo novamente as cabeças usando aquela expressão que conhecíamos tão bem: - mas o raio dos pretos são todos iguais...
agora, eram os que tinham visto o ladrão ir na direcção das nossas casas que inchavam o peito.

agarra que é gatuno - III

eu de olhos bem abertos ía prestando atenção às conversas tentando perceber o que se passava. a certa altura, junto a nós, parou um jeep da polícia que vinha dos lados do embondeiro gigante que nos olhava lá do alto junto à casa pequena abandonada,do imenso campo de golfe. era lá onde íamos aos bandos à procura de bolas perdidas que os camones abandonavam e nem se davam ao trabalho de mandar o miudito carregador procurar, para as abrir e tirar as borrachinhas para derreter e fazer o visgo para apanhar catuituis.
dois polícias saíram do carro esticando as fardas e antes mesmo que dissessemos qualquer coisa, toda a gente se precipitou para o homem que estava sentado atrás no carro entre dois agentes.
acho que nunca vou esquecer aquele rosto. a sua cabeça tomara a cor avermelhada da terra. na sua cara uma crosta começara a formar-se da mistura de terra com sangue pegajoso que lhe saía de uma pequena abertura na testa, lhe tentava turvar os olhos, e se ía juntar ao fio que se soltava das narinas empapando-se depois entre os lábios bem aumentados.
apesar da gritaria, dos insultos da populaça que quase se atirava a ele mantivera-se sereno. os seus olhos não expressavam nem medo nem raiva. aqueles olhos, o corpo tombado para as pernas dobradas, rasgões quase tantos na pele como na roupa que trazia testemunhavam o tratamento que tivera.

agarra que é gatuno - II

a dona porca, alcunha de há muito, de uma das nossas vizinhas da rua, assentava as manápulas calosas nas ancas firmes esticando o pescoço no prolongamento do peito liso, dilatando as veias, para dizer de sua justiça. o carrapito hirto da goma de óleo no alto da cabeça e os olhos transtornados confirmava o que falava. aqui para nós a senhora parecia que só tinha tomado banho para embarcar no infante dom henrique (aquele barco onde todos os nossos colegas pulas tiravam a fotografia vestidos a coboi (cow boy), sentados no cavalo de pau e que nos deixava a morrer de inveja quando nos mostravam na escola, fazendo-nos imaginar as delícias e aventuras daquele cruzeiro que jamais experimentaríamos). como dizia, aquela senhora, sapatos não usava, e os pés íam para a cama no mesmo estado em que saíam da terra preta da sua horta quando de baldes à cabeça esventrando a terra com seus braços musculados, ou regando as couves com água da fossa, se dedicava aos trabalhos de casa. Aquela senhora então dizia e afirmava a pés juntos que tinha visto o preto fugir. Chegou mesmo a persegui-lo, só que o perdeu de vista ali perto das nossas casas. a sua estatura, prosseguia ela, - era exactamente igual à daquele miúdo. e apontava o nosso irmão.

agarra que é gatuno - I

acordámos sobressaltados.
a mãe vestia apressadamente a bata de chita da gajageira de todos os dias e calçava os chinelos. o pai abotoava à pressa as calças com o talho de alfaiate, feitas pela mãe na máquina de costura da prima victória, tronco nu, e saíam para a rua ajeitando o cabelo com as mãos.
havia confusão. parecia tratar-se de um roubo ali perto.
saltámos todos da cama e fomos lá para fora onde o sabor fresco da madrugada ainda se fazia sentir pois no céu haviam ainda somente aparecido uns pequenos rebentos de sol. ao fundo do nosso quintal, na estrada de terra, tinham-se juntado várias pessoas da vizinhança que ainda mal conhecíamos pois morávamos ali há pouco tempo.
O vizinho da casa geminada à nossa que era da polícia, já lá estava e explicou-nos de que se tratava apenas de um roubo de galinhas. o gatuno, esse, já tinha fugido. uns diziam que o tinham visto fugir para os lados do campo de golfe que se estendia à frente do nosso bairro indo-se quase colar ao aeroporto. outros, juravam tê-lo visto passar na direcção das nossas casas.

o banquete - a partida - II

houve porém um dia, que o senhor zé, no costumeiro passeio arranjou logo duas gazelasitas para se banquetear. lambia os beiços de satisfação enquanto besuntava as jovens com o seu olhar viscoso pousado nos seus corpos. entre risinhos e chochos malandros, tiraram-no do veículo, enquanto este ajeitava com as mãos os membros moles como meias de senhora abandonadas no chão do quarto.
estava pronto. a caça mirando-o num jogo misterioso, quase perigoso. quando pensava lançar os seus tentáculos para abraçar as suas presas levou um safanão que o fulminou e o deixou estatelado no capim à beira da estrada.
as jovens tinham-se juntado para vingar as suas humilhações.
passou algum tempo até que se recompusesse. a moto, tinham-na deixado a uns bons metros. e para lá chegar levou muito tempo a arrastar o seu lodoso corpo de verme pelo chão. na sua cabeça e durante muito tempo estavam as risadas e a imagem das mulheres que bamboleantes se afastavam, satisfeitas da sua proeza.
foi alguém que por acaso ali passou e já depois de muito tempo ajudou a sentar o homem que espumava de raiva.
nunca mais ninguém o viu por aquelas paragens.
valera bem a partida.

maio de 1985

o banquete - I

muita gente riu a bom rir com esta estória.
quando imperava a lei da força, do poder, a lei do mais forte, o senhor zé, que tomado por uma doença que de um dia para o outro o pôs paralítico, querendo saciar-se com a carne fresca de umas gazelas assustadas que se embrenhavam em correrias pelos matos na fuga aos tentáculos dos homens que como ele tentavam tomar os seus corpos a coberto da lei, passeava-se como habitualmente na sua motoreta de aleijado pelo riwingui. era uma sanzala perto do lugar onde o tal homem de pedra que está ao pé da administração se matou com os barris de pólvora por lhe terem puxado as barbas e metido as mãos nos bolsos, a embala, no kuito.
ali, aguardava por uma presa que a troco de algum dinheiro se dispusesse a tirá-lo do veículo e a deitar-se com ele no capim.
só que este senhor estava habituado a que após o trabalho feito, saciado e de novo instalado, acelerava a motoreta e virava as costas sem pagar, vomitando ainda obscenidades para as mulhesres que usadas e humilhadas não podiam sequer levar para casa o dinheiro para sustento da família.

velho missas - okucinguila - III

uma coisa ouvi a mãe contar, a que o branco nunca se sujeitaria mas a que assistiu ela o velho missas fazer.
ele encontrava-se doente. chamaram o quimbanda que lhe disse que ele se encontrava possuído por um espírito de alguém falecido. era preciso tratar.
o velho missas deitou-se na esteira, o batuque gritando nos seus ouvidos, possuindo o seu cérebro, percorrendo todo o seu corpo que alagado de suor principiava a tremer, a estrebuchar, num imenso frenesim do ritmo incessante até ao êxtase.
velho missas, o branco que já quase não sabia falar a sua língua materna, aceitou mesmo xinguilar. - okucinguila-.
estava curado. o ritual terminara. nestes casos, era costume pagar ao quimbanda o que eloe pedisse. quando se tratava de uma pessoa de posses não se ficava pelas galinhas, pedia mesmo cabritos e até bois.
mas este pagamento o quimbanda dividia uma parte para os presentes e levava uma boa parte consigo. assim, o ritual terminava em festa. mas agora o rufar dos batuques era já para o remexer dos corpos, para tirar a alegria de dentro e deixá-la transbordar num clima fraterno de comunhão com os outros e a natureza.

maio de 1985

velho missas - II

mas houve pelo meio algumas grandes partidas a que pude assistir, chamávam-nos os brancos matumbos. estes sim... foram completamente transformados, diria coisa que os homens do plano não estavam à espera. isto lembrou-me o velho missas.
vou-vos contar: - o velho missa, vivia numa sanzala no cavango. não era um branco considerado pelos seus iguais, tinha ficado matumbo. seus iguais, passaram a ser as gentes do quimbo onde viveu todo o restop da sua vida. sua filha de mulher da metrópole chegou a procurá-lo mas ele pediu-lhe que regressasse para junto da mãe. que refizessem as suas vidas. o seu lugar não era ali.
vivia no seu mundo, um mundo bem diferente do que deixara no puto mas que, não só aceitara como quisera fazer parte dele. integrara-se totalmente e vivia feliz com as suas mulheres e muitos filhos.

velho missas - I

"A Luz que te deixa ver os outros é aquela que deixa os outros ver-te a ti também"

A história nunca pára. Por mais voltas que os homens possam dar, que engendrem planos, que represem este rio imenso, ele acaba sempre transbordando, retomando o seu caminho, e por vezes chega mesmo a pregar partidas como que chamando à atenção por tanta incongruência.
houve tempos, não há muito, que vi um plano arquitectado pela cabeça de uns homens. era assim algo comparável, como hei-de explicar; como retirar de um indivíduo todos os órgãos e substituí-los pelos de um cavalo. então o homem exteriormente com a mesma aparência começaria no entanto a relinchar a galopar e a alimentar-se de feno. enfim, a comportar-se com o garbo e a inteligência do animal. a suficiente para se deixar montar, usar, e mater-se fiel e amigo do seu dono, aceitando de consolação um torrãosinho de açúcar. resultado os homens viram o seu plano gorado pois insesato e ridículo. os homens continuaram os mesmos e orientaram o curso da sua história que não parou.

o casal xadrez- pessoas normais - IV

eram pessoas de aspecto vulgar que pecavam única e exclusivamente por terem nascido com a cor de pele diferente um do outro. trabalhavam ambos no hospital. saíam de casa unicamente para ir trabalhar e quando regressavam à tardinha recolhiam-se em casa conservando sempre as janelas fechadas.
pouco falavam, dir-se-ía por existir tal distanciamento que na realidade nada tinham a dizer a não ser o cumprimento que por educação não escusavam fazer a qualquer vizinho que com eles se cruzasse.
viveram muito pouco no nosso bairro. foram para outra cidade. soube-se depois que ele era irmão do manguxi, pelo menos todos acreditámos que era, e a relação com o mais-velho, dizia-se, levava a que a pide andasse em cima deles, daí as contínuas transferências compulsivas, estratégias de desgaste, do regime. sem razões para os prender investiam na perseguição, provocação e como se não bastasse, ainda a xingação da pequenez provinciana das gentinhas apontando o Casal Xadrez.

maio de 1985

o casal xadrez | preto no branco - III

Apercebemo-nos de qualquer coisa no ar, mas antes do zum-zum chegar à nossa casa, vimos a razão daquela, se me dão licença, pouca vergonha!...- é que vejam bem, os nossos vizinhos, "não eram um casal normal...". ela era uma branca, e ele, imaginem lá o desplante, um preto!... comentava-se.
era sempre um espectáculo vê-los sair pela manhã para o trabalho. e trabalhavam os dois... e ouvir uma sinfonia de fechos rodando, o entreabrir de janelas a deixar que os olhos da ignorância pudessem apreciar o casal a sair.
- é que convenhamos, um branco com uma preta...
adivinhe-se o porquê, ainda vá... necessidade fisiológica e tal, masculinidade, virilidade, o estado animal, um homem não é de ferro, elas viram-lhes a cabeça... etc, ainda vá...
- agora uma branca com um preto!
- isto invade já o terreno do respeito não é?
- mas afinal de contas, que mulher seria essa que se expunha, se baixava dessa forma?
a notícia chegou à cidade. a mana mais velha veio com a novidade que já tinha chegado à escola técnica, e que nos encheu de estupefação.
- mãe, havia quem se risse mesmo na cara deles!...
- ah, e já têm nome, - o casal xadrez!

o casal xadrez | o nosso bairro - II

seis pares de casas, cada par de sua cor, era o nosso bairro. o antigo bairro dos operários. boas e amplas divisões chão vermelho de encerar o que nos custava uns bons castigos quando a mãe descobria, especialmente na sala, as marcas dos nossos pés. nós vivíamos nas verdes.
naquele dia nas cor-de-rosa, havia um movimento fora do comum.
era a casa geminada à da d. ani, uma das pessoas mais antigas dali do bairro que ía vagar. corria o ano de 65 e o senhor junqueira, enfermeiro pretigiado que ali morava, ía-se mudar para a cidade com a sua mulher e suas crianças.
mas foi a presença dos nossos novos vizinhos que pôs em alvoroço a gentinha do bairro.
começaram os murmúrios, as vizinhas cochichavam, riam à socapa. parecia que havia alguma coisa com os novos moradores que não estava bem. ou pelo menos, menos bem, a julgar pelas murmurações.

o casal xadrez - I

no caminho para a gare, antes do bairro indígena, bairro pobre, fileira de casas brancas a lembrar ao longe o muro de um cemitério. bairro para os pretos feito sob a capa da acção humanitária e igualitária antes o gueto para onde jogaram à sua sorte uns quantos, ficava o nosso bairro.
atravessando a estrada de alcatrão do lado esquerdo havia uma grande extensão de eucaliptos que ía dar ao horto.
o horto era o lugar idílico. local privilegiado, no ar o aroma da diversidade das plantas que cresciam sob o olhar atento, quase paternal do velho hortelão que nunca negava a ninguém um pésinho daquela planta que ainda não se tinha no jardim. esta coisa dos bocados de terra asfixiados nos plásticos empilhados num canto com inventado requinte, claro, ou emprateleirados, e os pseudo habitats de plantas artificialmente vivas que constituem os garden centers dos grandes supermercados das cidades só conheci mais tarde. aqui, não se pagava o que a mãe natureza oferecia, mesmo quando havia um ser humano cujo trabalho era ser seu colaborador protegendo a fragilidade de alguma das suas crias.
do lado direito e atravessando orio encontrávamos o riwingui, corruptela de living, nome porque era conhecida esta sanzala.

banho colectivo | no fim da viagem - VI

de tudo quanto vi uma coisa achei bonita de recordar.foi um banho colectivo. a mãe já nos tinha contado que era costume do nosso povo banhar-se no rio comungando família inteira com a natureza na doçuradas águas.
os do puto,contava, é que o faziam às escondidas e segundo sedizia tomavam banho três vezes. à nascença, no casamento e na morte. e mesmo essa moda do sapato que atéparece que os colonos nasceram com ele,é só para impressionar e fazer a diferença do preto. muitos, só aprenderam a calçar no barco na viagem para cá... coisas que se contavam...
foi no luena. eram crianças homens e velhos. mulheres e homens juntos. corpos nus tomando banho nas águas do rio. a mãe disse-nos no entanto que cenas como esta ultimamente já eram raras. nos últimos tempos escondiam-sedos risos maldosos e dos olhares gulosos dos ñguetas.
ali, vi que a nossa vergonhase destituía de sentido. era apenas fruto de um somatório de moralidades disparatadas que nos tinham incutido assentes em falsos pudores vindos das falsas e erradas ideias sobre o corpo, sobre o respeito e a relação com os outros, com a natureza,sobre a alegria, a felicidade e o amor.

maio de 1985
março de 1999
julho 1990
outubro 2009

banho colectivo | a viagem - V

estava de férias, o pai tinha-me levado para mais longe que nova lisboa desta vez. mas não ía para a direcção de moçâmedes, tinhamos descido e depois virado para leste rumo ao moxico onde o mano nasceu com cinco quilos, na véspera da actuação do horácio reinaldo um grande acontecimento naquela terriola, de maneira a que até a mãe chegou a pensar por o nome no miúdo, mas a madrinha teimou em dar-lhe outro.
assim passámos por muitas terras, muitas sanzalas. nas matas olhava com atenção os pássaros de todas as espécies e cores que não era possível apanhar com o visgo feito com o miolo de borracha do ventre das bolas de golfe apanhadas no campo em frente ao nosso bairro, e único espaço a campo aberto que nos distanciava do aeroporto da capital. alguns eu conhecia bem. as viúvas todas vestidas de negro o bico delacre de bico cor de sangue,as celeste de peito cor do azul do céu. por vezes o pai chamava a atenção para uns mais raros para mim, de cores lindíssimas, caudas longas, bicos compridos, curtos,curvos ou direitos que trespassavam as nesgas de céu entre a copa das árvores. os macacos viam-se por toda a parte saltitando de galho em galho e que me faziam lembrar o nosso pantufas que me esperava lá em casa para as nossas brincadeiras. as plantações eram tantas que se perdia a conta.os cafezais embrenhavam-se pelas matas e eu pensava como devia ser difícil a apanha do café,se bem que a mãe dissesse que no sisal era mais penoso. na apanha do sisal ficavam com as mãos dilaceradas, e assim, na altura do contrato era à força que se arranjava pessoal para a apanha do sisal. felizes daqueles que íam parar ao café.

banho colectivo | na viagem - a mãe e a formiguinha que prendeu o pé na neve - IV

era já noite, e não se sentia o cheiro vindo da cozinha nem o fogareiro a cantarolar.
estava um frio de cacimbo que arrefece bem as noites do sul e fazem cieiro nas pernas e até pode rachar os calcanhares. a mãe resolvia o problema besuntando-nos cuidadosamente com glicerina adocicada que tornava a pele bem sedosa.
a mãe parecia triste mas não queria demonstrar. estava sentada e eu aproximei-me e encostei-me ao quente do seu colo grande.
ela passou-me a mão pela cabeça pegou-me ao colo ecomeçou a contar a história.
era a história da formiga que prendeu o pé na areia.os manos começaram a aproximar-se e daí a pouco estávamos todos embevecidos a ouvir a mãe.
passou muito tempo com a mãe a fazer render a história de tal maneiraque eu acabei por adormecer e os manos ficaram ensonados e seguiram-me as pisadas.
há tempos quando lembrei isto à mãe ela riu-se e confessou que de facto não tinha muito jeito para para aquelas histórias mas que naquele dia tinha tido apenas aquela ideia porque não tinha nem pão para nos dar de jantar.

banho colectivo | o pai o nosso heroi viajante - III

o pai faláva-nos deos livros do tio, e pela sua boca conhecemos as pupilas do senhor reitor, o amor de perdição, o conde de monte cristo e ouvimos pela primeira vez falar duma coisa como apena de morte em cadeira de gaz com o Chesman.
o pai era assimo nosso herói viajante.
quando vinha a casa era motivo de festa,juntava a pequenada na nossa varanda aouvir connosco as histórias do pai naqueles saborosos serões.
fazia-sesilêncio. Só seouvia o pai que subia ou baixava o tom da voz,arregalava ou semicerrava os olhos, batia as mãosou os pés, imitava os sons, cantarolava ou gesticulava consoante o momento o exigisse.
era único. assim, viajamos com elepelasmil euma noites, estivemoscomo miséria, paralisámos de medo com o som dos passos do diabo.
Tum tum... parava! tum tum... parava!...e o nosso coraçãozito disparava.
vibrámoscom o ali bá bá e os quarenta ladrões,acompanhámosozé do telhado,sonhámos com o aladino e alâmpada maravilhosa.
da mãe ficaram as estórias da vida e fora essas só melembro de uma única na minha infância.
a da formiguina que prendeu o pé na neve.

banho colectivo | na viagem da vida com o pai - a rádio misteriosa - II

ansiávamos sempre por estes momentos das férias ou pelosdias que passavaem casa no intervalo das viagens e eram poucos aolongo do ano. viamo-lomoldar o barro, pegar nos óleos epurpurinas e criar jardins na parede da sala ou a fazer bustos ou estatuetas do seu imaginário.
o pai teve um sonho... o de entrar para as belas Artes. Só a alguns amigos brancos coube a sorte da bolsa em portugal. chegou mesmo na juventude,oh, santa inocência!... a escrever ao salazar a pedir a dita bolsa, mas comoeu dizia,era umsonho... nem sequer obteve resposta.
naquela época já era fanático pelo noticiário, as notícias que passavam na rádio, como hoje pelo telejornal, o que significava que eram alturas lá em casa em que não podíamos abrir a boca fosse pelo que fosse, pois levávamos um ralhete que nos punha todos encolhidos. mas havia umprograma que deixava a mãe muito nervosa,epedia encarecidamente aopai que pusesse o rádio baixinho para os vizinhos não ouvirem o que nos deixava muito intrigados...
a mãe fechava as persianas para que nenhum som passasse para fora de casa, o pai nem a escutava, rodava o botão do rádio que roncava emitindo ruídos desafinados,procurando sintonizar a emissora misteriosa. e era mesmo misteriosa porque quando o pai a encontrava nãoconseguíamosperceber o que os homens lá de dentro falavam. - alface chegou à horta! ouvia-se quase ao fundo dos riscos das interferências. eram afinalcódigos. esó alguns iriam perceber. era então que opai colava o ouvido ao aparelho e se virava de vez em quando para nos mandar calar e a avaliar pelo quadro adivinhavamos que se trataria de alguma coisa perigosa.
o ar cheirava a medo como quando perdemos o nosso mano mais velho então com doze anos quando ainda nos estávamos a habituar ao calor nos dias da capital.
o mano era mesmo curioso, e já com os brinquedos tentava sempre saber como funcionavam e ver o que estava por dentro. então entretinha-se sempre a desmanchá-los e a montá-los outra vez. era a sua brincadeira favorita. foi assim que pensámos que tudo aconteceu quando encontrou aquele engenho que o levou de nós. desta vez tratou-sede um brinquedo estranho que tomou conta dele enunca nos devolveu, fazendo-o desaparecer das nossas vidas para sempre.
foi perto do RIL o regimento de infantaria de luanda. estava a chuviscar, ele ainda voltou atrás e pediu à mãe mil e quinhentos, era assim que o valor 1$50 de um escudo e cinquenta centavos,para o machimbombo. era dinheiro que a mãe não tinha para que o fariam poupar os muitos quilómetros que tinha que fazer que o separavam do bairro tomando a estrada de catete até à escola. foi já perto,junto aos maristas que aconteceu a tragédia que nos roubou o chiquinho ainda o 68 maltinha começado. amãe com os olhos tristes abanou a cabeça e ele lá foi...
quando a polícia parou à porta foi para nos dar a notícia a que se seguiram os interrogatórios ao pai, não fosse ele ter mandado o mano pôr a bomba na escola.
Enfim,tinha sido afinal apenas uma vítima de um descuido de guerra, e não tendo sido o pai o terrorista não se apuraram mais responsabilidades...
uma vez o pai foi detido para responder por uma venda de armas aos turras. eram visitas atrás de visitas à nossa casa enquanto o pai não estava e também não estava em viagem. queriam uma fotografia dele mais novo e a mãe procurava remexendo à procura da lata de bombons suissos às flores por baixo dos naperons de renda e lençóis brancos do enxoval, dentro da mala de cânfora. enfim, coisas da pide a que muito poucos escaparam.
já em tempo de liberdade, já falávamos alto e bom som sobre aquela emissora misteriosa, a Angola Combatente, e outros mambos como este, agora até já com certo orgulho.

banho colectivo | o pai e o nosso mundo - I

íamos a caminho do moxico e corria o ano de sessenta e nove e foi a viagem mais longa de que me lembro de ter feito com o pai.
o pai era camionista. andava de cá para lá dias e noites sempregar olho. trabalho sem horário sem férias rasgando estradas poeirentas.
nas férias grandes da escola, levava sempre um de nós a passear. era o nosso presente por passar de ano. púnhamos as conversas em dia e aprendíamos estórias sobre pessoas e lugares. coisas sobre o mundo, milhões de coisas... - a vinda dos bohers no final da segunda guerra mundial,o tio luís a ouvir notícias da guerra, a senhorita Bárbara a professora primária do pai, os jogos de futebol com os pés descalços que fazia criar bitacaias, para não estragar o único par de botas de ensebar. as partidas ao s enhor padre, o doutor cirurgião da Chissamba que veio do Canadá e que fazia milagres, tratava toda a gente por igual e tinha enfermeiros pretos formados por ele a trabalhar ao seu lado,o doutor Stranguai como nós o conhecíamos e servia de referência para a figura do melhor médico do nosso mundo.
Cambambe,mabubas, o belo espectáculodas grandes barragens que nos faziam sentir pequenininhos,a nossa senhora do monte onde sai água a ferver das pedras. a grande proeza dos homens que rasgaram a serra para a construção da leba, a welwitchia do deserto, as uvas de moçâmedes, os cavalos do roçadas.
o pai que tinha saído de casa aos doze anos para se fazer à vida,já era um homem e foi tratar do seu sustento, sabia tanta coisa que sabia bem ouvi-lo.
aproveitávamos cada segundopois o pai passava mais tempo com a estrada que connosco.

vó júlia | a velha júlia - IV

a velha júlia está agora vestida de negro. pasas os dias na soleira da porta olhando a rua ou no quarto olhando um canto qualquer. nada a pode distrair. viver seria acordar cedo no Cunge com o cheiro do mato, o canto dos pássaros a cuidar da sua lavra onde não se aprende o tricot, e os livros e a tv ficam no semear esperando crescer para colher e de novo semear. tinha "escolhido" o caminho do seu homem e ele já não existia.
os médicos dizem que tem um coração forte e está, de resto, muito bem para a sua idade.
a vó está enclausurada no seu próprio mundo a viver e reviver a sua não existência.

Maio de 1985.


a vó partiu em 89

avó júlia - III

a vó júlia aguentou até à velhice do companheiro. chegaram mesmo a casar de senhor padre e papel assinado. para ela o direito ao afecto, a ter filhos, apenas chegou com a maioridade destes. tornou-se velha resmungona, ele velho doente. deixaram a terra e os bens. a terra onde vivara com o seu homem dono e senhor de tudo e de todos. a terra foi entregue aos seus filhos tornou-se independente.
regressou à terra onde nasceu, sua companheira junto dele.
a terra, por ironia, recebeu-o como estrangeiro. já não era capaz de aguentar o frio penetrante da serra. seus parentes com suas vidas não aceitaram mais o encargo de dois velhos. foi viver com um dos filhos que começou a vida em terras brasileiras mas não aguentou muito tempo. era sua vontade morrer na sua terra natal, reivindicou. voltou para juntos dos filhos na costa do sol e esperou a morte na cama lúcido até ao fim, num misto de sofrimento e alegria que se adivinhava pelo olhar. estava apesar de tudo rodeado do carinho dos filhos e da companheira.

vó júlia | o avô chico - II

a vó júlia vivia com o seu homem. servia-o fielmente. cultivava uma pequena lavra só sua que era o seu sustento. vendia os seus produtos na loja do seu homem que lhe pagava menos que à população rural sua clientela.
apesar da sua condição de actual esposa, não habitava a casa "senhorial", vivia no quintal. toda a roça, todos aqueles bens, incluindo ela própria eram pertença dele.
ela gerava os filhos, punha-os no mundo, mas não tinha o direito de os criar. iam para a casa grande para serem criados pela velha augusta sob a tutela do tio luís.
eram apartados dela muito cedo. o seu homem não gostava de ser perturbado pelos negrinhos e elea tinha que estar disponível para ele. a sua caçula nasceu na capoeira do quintal. chovia torrencialmente, as dores eram cada vez mais fortes mas nem implorando obteve autorização para entrar em casa.
contam que numa altura em que o seu corpo alimentava um novo ser que ía crescendo mesmo com o trabalho árduo na lavra, os maus tratos, aguentou tudo, até ao suor, ao grito, ao rasgar do corpo, ao sangue, ao parto.
desta vez a criança não aguentou a agarrar-se à vida. foi de mãos vazias a boca gritando a dor da alma que recebeu do seu homem a resposta seca, - não faz mal, faz-se outro!
os filhos cresceram, fizeram-se homens. tinham feito a primária completa orgulho do tio luís. esse branco que a morte levou cedo.
cresceram com respeito, amor, até admiração pelo pai branco que nesta altura já visitava os filhos e acarinhava os netos amaciado pela velha e sábia mãe-áfrica. assumia já o seu papel. então punha-me ao colo e cantarolava para mim, - xina papa roz!!!... fazia cavalinho e chamava-me lêndea fina, a pequenina caçulinha da altura.
amei o avô chico a versão do meu pai. era o meu avô, que nasceu na serra da estrela, em seia, onde há neve. que entrou na guerra de 14 a 18, e lá estava a fotografia a comprovar., numa pose elegante com a farda bem arrumada e a braçadeira com a cruz vermelha.
era o meu imaginário sobre a neve, o frio, o branco, o poder, na grande guerra, o ser bem sucedido, o ser evoluído, os brancos, o país dos brancos, a metrópole, o que me era dado a conhcer, o modelo por que me tinha que pautar para "ser alguém".

vó júlia | a velha augusta - I

era a mãe do pai a vó júlia.
a vó schultz, filha do alemão, a mãe de verdade que o gerou partiu ainda o pai era pequeno, e nessa altura já não vivia com o avô que já a tinha trocado numa ocasião em que adoeceu.
o pai cresceu no meio de irmãos, meio-irmãos, primos e filhos dos amigos do tio.
o luís, o tio luís era o irmão do avô que recolhia na roça toda a prole. homem de coração.
chegava mesmo a mandar as crianças para a escola, as do irmão e as dos amigos que vinham da metrópole tentar a sorte e deixavam os miúdos na roça.
alguns o pai já tem encontrado. fizeram-se doutores.
nesta roça onde nada faltava, eram educados por uma negra europeisada, autêntica governanta inglesa.
de forte personalidade fazia-se respeitar pelo branco.
supervisionava todo o trabalho da criadagem, cosia, bordava, cozinhava com requinte e educava as crianças. educação rígida, dura, no melhor padrão da época, a única que conhecera, recebera, emj que fora moldada.
as crianças tinham-lhe medo e não aprendera a amá-la.
assim, a velha augusta, era assim que a tratavam, quase dona de casa e mãe de todos os filhos dos outros, acabou numa esteira no chão sem uma manta para a tapar.
nos últimos tempos diziam que era feiticeira. chegou a adoecer e ninguém a queria visitar, acho que tinham medo...
não sei quem crou essas histórias, a velha feiticeira e não sei que mais, mas isto lembra-me sempre o que acontecia no tempo da inquisição, a sabedoria e a diferença nas mulheres tinha um preço muito alto. eram as bruxas que ardiam nas fogueiras.
ontem como hoje, os mitos criados à volta das mulheres pela transigência ou transgressão. daí que a velha augusta no seu tempo fosse distanciada de tudo e de todos quando as crianças se tornaram adultas e já não era precisa.

Avó Maria | a mãe - VI

A vida encarregou-se de endireitar as coisas.
já mulher, emília várias vezes recebia a visita da mãe.
na sua cabeça pesava ainda aquela recepção que lhe fizera nos seus oito anos quando a vira pela primeira vez.
maria fez-lhe entender que não havia lugar para arrependimento, nem perdão, o importante é que estavam juntas e a vida não as tinha conseguido separar.
Vó maria,já velhinha com os seus longos panos, fazia questão de morar sozinha na sua palhota de chão de terra batida, bem alisado, que parecia cimento vermelho.
por vezes ficava alguns dias lá em casa. Sentava-se, desenrolava a "limbueta" por baixo dos panos que lhe ajustava a cintura,onde guardava o tabaco e o seu cachimbo.
preparava-o com cuidado e o vagar saboroso do tempo, que nos permitia acompanhar e gravar na memória, e colocava-o ao canto da boca soprando grandes baforadas de azul que rodopiava no ar e enchia o ambiente do cheiro que já conhecíamos bem.
Eu era a sua caçulinha na altura. aninhava-me ao seu colo magro, e fazia muitas perguntas.
na mão esquerda tinha um quisto enorme que parecia uma tangerina escondida sob a sua pele escura.
eu palpava-a e perguntava,- avó que ícho? e ele serena respondia-me coma a longa estória do leão malvado que lhe tinha mordido a mão. - a mão inchou e ficou sempre assim xinha.
morreu muito velhinha a avó maria,não sei quantos anos. a guerra levou-a para a filha que estava a viver agora no huambo onde viveu os últimos anos da sua vida independente na sua palhota.
tinha já a viagem prometida para visitar a sua filha mais nova agora a viver no puto com essas coisas das confusões da altura da independência.
as coisas também não estavam a correr bem. a guerra não deixava semear,a miséria e a fome era muita.
na viagem ía vestir os panos novinhos que a filha lhe mandou que imitavam bem os quitengues já gastos de muitos anos.
os netos já mulheres e homens feitos, bisnetos da mais velha que ainda não conhecia, esperavam-na com ansiedade.
estava prometido. mãe e filha íam finalmente viver juntas.
o destino não quis. partiu antes de abraçar a filha,os seus netos e bisnetos,
e meu deus... quanto havia ainda por trocar, partilhar, por dizer...

Maio de1985

Avó Maria | Maria da Conceição - V

Maria vivia junto com o seu homem. dessa união nasceram duas meninas, mas luciano entretanto resolvera casar-se, não com ela claro, que não era do seu nível.
comunicou-lhe que deveria abandonar a casa. quanto às meninas, a mais velha ficaria com ele e a mais nova, bebé de colo, três meses ainda mal feitos iria com ela. Só a traria quando completasse um ano de idade. Aí já não precisaria da mãe e como tal ficaria bem sob a sua protecção.
assim falava o seu homem e punha e dispunha dos "seus bens".
Maria escutava, a mais nova agarrada ao peito.
peito duro, dorido, pesado do alimento que o seu corpo preparara para a sua criança.
na sua cabeça um turbilhão, seu peito parecia que ía explodir,de mágoa,de dor,de humilhação.
a garganta estava seca, emudecera,os seus olhos fixavam o vazio.
no entanto mantinha a cabeça erguida. nada implorou, como uma verdadeira cuanhama que era.
foi-se embora no mesmo dia, a outra já tinha ocupado o seu lugar.
na sanzala os seus parentes acolheram-na. na verdade, decorridos três meses, levou a sua pequenina para a casa farta. Era como se um pedaço de si estivesse a ser arrancado. Sabia,é que lá, a menina teria uma vida melhor que no quimbo.
refez a sua vida conheceu entretanto o homem que a acarinhou na miséria do quimbo e lhe deu mais filhos.
foi assim, que via a sua filha a crescer, brincar com as outras crianças na grande roça, espreitando através da cerca e resolveu um dia volvidos oito anos encher-se de coragem e pedir para que a apresentassem à sua menina.
reuniu alguns presentes e lá foi...

Avó Maria | o pai burguês - IV

O pai usufruía de estatuto de "mulato burguês", o que lhe permitia frequentar as mesmas festas, os mesmos locais dos brancos, exigindo mesmo por parte deles tratamento e respeito igualitário.
estatuto ilusório, que o levou a pensar que podia agir como os seus "iguais". de tal forma que um dia, o chefe de posto, autoridade máxima da região, "quis passar das marcas",e ele não foi de meias medidas, pegou no canhangulo e pô-lo fora da sua propriedade.
vejam lá que o chefe do posto tinha tido a ousadia de lhe querer dar o mesmo tratamento que costumava dar aos pretos... tinha tido o tratamento que merecia! e isto afirmava ele a bocas cheias...
homem trabalhador, com uma visão demasiado alargada para a época,impunha-se exigindo respeito.
claro que durante a sua vida o amigo luciano exagerou no seu estatuto, daí que até hoje se pergunte como morreu tão jovem com uma simples apendicite. operação com pagamento adiantado e tudo.
negligência médica?... contas saldadas?...
a mãe diz que ele percebeu a trama toda que o levou tão cedo desta vida. chamou-a a si mais a sua irmã e pediu-lhes que se mantivessem unidas.apelou à mulher que não as abandonasse.
Os "credores", e apareceram muitos..., confiscaram-lhe praticamente todos os bens.
Mas foi riqueza que não durou muito. conta-se que as cabeças de gado morreram uma a uma e os novos proprietários seguiram-se-lhes também um a um. fala-se de uma família inteira...

Avó Maria | Maria da Conceição a cuanhama - III

Já mulher feita conheceu a sua história. afinal como é que as coisas se tinham realmente passado.
Maria, Maria da Conceição, mulher jovem de rosto delicado a quem a natureza caprichosa fez nascer uns olhos cinzentos que sobressaíam na pele negra, nascera na huíla.
povo poderoso, criador de gado, que se alimentava essencialmente de leite e seus derivados. o leite ainda responsável pelo aveludado da pele das mulheres.
foi para ao planalto pela via das expropriações desenfreadas para a criação de colonatos. povos inteiros se deslocavam com suas famílias e haveres empurrados para outras paragens consequências da filosofia do império.
conheceu o seu homem, poderoso agricultor que herdara do pai branco seus hábitos, costumes,sua cultura.
na sua casa, solar colonial, reunia à mesa da sala de jantar as crianças a quem ironicamente o coração conflituosamente generoso e bravo, branco/negro, dava tratamento igualitário. Era onde aprendiam como comportar-se e onde ouviam através das conversas dos adultos as novidades e o que se passava no mundo.
amante da música tocava vários instrumentos de corda e ensinou a própria mulher a tocar bandolim para o acompanhar. tinha mesmo querido ensinar as meninas, e até hoje a mãe se arrepende de não ter aprendido com ele esta divina arte.
maria-rapaz que era, tinha preferido trepar árvores como ninguém e saborear os frutos lá bem no alto, escolhendo o mais cobiçado, enqunto os menos ágeis aguardavam babando cá em baixo, pelo que lhe restasse.
o seu único rapaz tinha-o perdido em tenra idade num atropelamento(?)...

Avó Maria | a mãe - II

a mãe que conhecia desde que se lembrava de ser gente, levou-a ao grande portão da casa e de chofre disparou,
- vem miúda,vem cumprimentar a tua mãe, e apontava a visitante que nos esperava, sem esconder o sarcasmo na voz. sentiu como que uma bofetada.assim de repente a mãe tornou-se uma impostora. mirou a outra, uma negra, que vestia panos e que a olhava com ternura. sentiu-se ultrajada.num acto de fúria e com o fraseado colonial aprendido com a cartilha atirou,
- não tenho mães pretas! não a conheço! deu meia volta e fugiu a chorar odiando o mundo...
a mulher negra ficou estarrecida. tinha trazido uma quinda de fuba,ovos e uma galinha para presentear a sua menina. entregou à outra que sorria.
depois de todo aquele tempo voltou a partir de mãos vazias.
emília soube depois pela avó, a mãe do pai, que a sua mãe a tinha abandonado ali à porta.tinha apenas seis meses de idade. tinha arranjado outro homem e não tinha querido saber mais dela. enfim uma história igual a muitas outras.
a fuba que a mãe trouxe tinham-na deitado fora, não servia nem para os criados nem para os animais, podia estar envenenada.
durante muito tempo sentia muita raiva da mãe, pelo que lhe fizera. sentia raiva até de si própria por ter nascido dela.

Avó Maria - I

Chicongo,distrito do Bié.
povoação, três casas apenas, extensos cafezais, lavras, muitas lavras de milho e feijão, arrozais. terra fértil, a quem o kuito ía matar a sede.
a dois quilómetros uma única casa. a roça de grandes plantações, árvores de fruto carregadinhas enfeitavam e perfumavam o pomar.
logo ali perto o witata,filho mais novo do kuito que saciava aquelas terras.
aspecto quasi paradisíaco,a natureza oferecia tudo para fazer a felicidade dos seus filhos.
era nesta roça que cresciam muitas crianças cujas vozes risos e brincadeiras se confundiam com o chilrear dos pássaros o sussurrar da folhagem e a irrequieta canção do witata o afluente do kuito.
emília naquele dia foi chamada à casa grande. esperava-a uma visita foi o que disseram.naqueles tempos uma visita era sempre um grande acontecimento mesmo para os adultos, e naquele momento desconfiou.
malandra como diziam que era, tinha a certeza que ía levar uma achega.
se calhar descobriram que tinha ido tirar açúcar ao armazém às escondidas. ou seria por ter posto os deditos nas natas brilhantes que descançavam por cima do leite do grande alguidar da cozinha à espera de se transformar na saborosa manteiga fresca das manhãs? pouco importava.e lá foi...

muana puewo uneza | a mana primeira - III

nasceu mulher. seu homem ía endoidar de alegria.
esse não tinha dessas coisas, porque quero filho homem e etecetra, nada disso!
no meio do cansaço, suor a lavar o corpo, coxas empapadas do sangue sobre o pano que se colava e não se conhecia mais a cor, sorriu segurando o muana. sorriso quente de amor, de mãe.
o muana ainda se agarrava, mesmo já cá fora, a ela pelo cordão. nha kacela esfregou um pouco de cera numa linha forte, atou com a ajuda da mãe e cortou com uma tesoura a ligação.
quando se passa na lavra um londowe (liana fina), serve mesmo como linha encerada, disse-nos a mãe.
até aqui as coisas tinham corrido bem. faltava agora tirar do corpo tudo o que tinha lá dentro feito falta no muana pra crescer. agora já não podia mais ficar lá dentro, só perigava a vida da mãe. houve uma vez lembrou a mãe, num dos muitos casos, a nha kacela tinha mesmo que mandar soprar dentro da cabaça vazia agora nada disso estar ser preciso um pouco de força e um carregar sábio no ventre da mãe ajudava a conseguir tirar tudinho.
a selha já tinha água aquecida, cama já estava mudada.
tudo arranjado, mãe já com filho colado no peito, entra já seu homem feliz pra lh'abraçar.
enfermeiro chegou estava já tudo tratado.
nha kacela pusera mais um muana no mundo, corria o ano de 54.
desta vez,
muana puewo uneza! criança mulher chegou!

a mãe disse que a dignidade do povo luimbi, assenta no valor da descendência.
assim, quando se é mãe deixa-se de usar o nome, para passar a usar o nome do filho precedido do prefixo "nha"
do mesmo modo o pai para a usar o nome do filho mas com o prefixo "sa"
nha kacela - a mãe de kacela
sa kacela - o pai de kacela
se a memória bem o registou aqui fica...

Maio de 1985

muana puewo uneza - a mana nasceu - II

nha kacela acendeu o fogo e preparou a selha dos banhos com a experiência de muitas chuvas.
passou algum tempo. nha kacela chegou mesmo de adormecer encostada ao seu ventre já bem descido.
já não dava pra'guentar mais. tinha chegado a sua hora. então falou já num gemido,
- muana ukuiza! o filho está vir.
- nani kanda!... ainda não... respondeu nha kacela
mas não adiantava esperar mais, então pediu p'ra lhe segurar ali em baixo. e as mãos de sabedoria apalparam-lhe as entranhas
nani txiri, exclamou nha kacela, é mesmo verdade!...
estava mesmo a chegar. era já a cabeça do muana a forçar sair no mundo.
fez força, a dor naquela hora tomava-lhe conta até da garganta que respondia como o grito do trovão naquelas noites em que o céu se rasga e a terra estremece o imbomdeiro que fica parece mamoeiro a abanar e deixa até mesmo o leão com as pernas a tremer.
era mesmo assim que a dor naquela hora ajudava a abrir, a rasgar o corpo que largava das suas entranhas o corpinho do novo ser que se esgueirava lentamente.

Muana puewo uneza - I

nos últimos tempos já estava muito difícil.
a barriga já redondinha debaixo do vestido leve parecia era abóbora, tinha-se tornado pesada. agora tinha já embora de ajudar com as costas das mãos a apoiar os rins.
o corpo, esse, já se inclinava para trás e os pés já reclamavam cansaço.
parecia estava mesmo a hora a chegar. era seu primeiro. a sua primeira vez, mas o medo não lhe tomava conta, esperava só. seu convívio com a natureza estava tornar tudo mais simples.
no morno daquela noite, com o xuáxuá das árvores, os cheiros doces quentes e os barulhos da mata, faziam-lhe esquecer o tamanho do susto doutro dia quando ía para o xingue afastado da casa que fazia de latrina e saíu nas corridas.
uma cobra bem comprida saíu do seu lado a se arrastar sem pressas parecia embora a casa era já dela.
nani, lá é que não ía mais sozinha. o xingue foi abaixo. agora era só ir mesmo no mato.
neste dia, as muitas horas de pé com o ferro de carvão parecia era chumbo, o muana desassossegado na barriga, fez que o cansaço lhe tomasse conta do corpo e ainda o galo não tinha cantado primeira vez e já começava a passear dum lado para o outro. sentar e deitar já não dava sossego.
logo, logo, veio o sinal, e um fio de sangue chegou de entre as pernas lh'avisar agora não faltava muito.
seu homem que esperava lá fora mandou homem de confiança chamar sô enfermeiro, o único das redondezas não fossem as coisas se complicar.
nha kacela, a velha com experiência dessas coisas já tinha assitido muitos muanas sair no mundo. lhe segurava nas mãos, lhe dava conforto. pediu-lhe então o pano que estava cobrir a mala no canto da casa de adobe e estendeu no chão de terra batida, bem alisada.
mandou sentar no pano, encostar as costas nos pés da cama, inchada do velho colchão de palha bem remexida por dentro do corpo do riscado camões empoleirado num estrado de madeira forte bem acabada pelo seu homem.
as dores essas já eram muitas.

Witenga | corpo dengoso - III

Olhos felizes, sorriso rasgado, usava panos coloridos, quimono, Witenga usava até colares embelezando seu pescoço fino que lhe caíam no peito empinado.
Todos sabíamos que a natureza tinha feito naquele corpo dengoso, por equívoco, um homem, mas aceitavamo-lo assim mesmo no meio das mulheres.
Chegou o tempo do contrato.
Todos os homens das sanzalas foram chamados.
Ali mesmo, só velho e criança pequena escapava.
Witenga a quem teimosamente chamavam Witengo foi obrigado a ir na carroceria do camião apertado na multidão de homens apartados, uns contra os outros a caminho dos campos, cumprir o penoso trabalho compulsivo nas roças do café sisal ou algodão.
Contam os mais velhos que levou surra. Obrigaram-no até a pôr calças.
Passaram muitas chuvas, até que Witengo chegou mais os outros companheiros.
Vinha com as calças postas à força como amarras que lhe aprisionavam o corpo e lhe esmagavam a alma.
Chegou novamente a permuta e entre os risos, a alegria e o quente-morno das conversas das mulheres encontramos Witenga com os seus panos garridos o seu quimono e seus enfeites a quem nem o contrato mudou o seu ser.

Maio/1985

Witenga | o tempo da permuta - II

Na época da permuta, as populações vinham das sanzalas das redondezas para a povoação, para a obrigatória e pouco rendosa troca de cereais e cera pelo peixe seco, sal, panos, quimonos e adornos.
Nestes tempos, era junto às lojas de comércio que se reuniam em grupos para falar na sua língua dos seus problemas, dos seus anseios, ou para afogar as suas mágoas na kissangua bem fermentada, ou diluir a revolta no tabaco forte da mutopa que passava de mão em mão.
As mulheres vinham também com as suas cargas à cabeça. traziam os filhos agarrados ao corpo. às costas atados com o pano colorido, faziam-lhes chegar a mama passando-a por cima do ombro com um toque de mestria que a criança prontamente agarrava sugando-a até adormecer. As ganguelas distinguiam-se das outras porque colavam as crianças ao ventre com um saco marsupial de pele de animal ou casca de árvore.Juntavam-se também. e nas suas conversas o calor, a ternura, o riso, a cumplicidade nas vidas juntas vividas.
Era nestas rodas de mulheres que encontrávamos Witenga.

Witenga | a povoação - I

Era a época das colheitas.
As populações acorriam ao mercado improvisado, onde segundo as "normas" do chefe do posto, que fornecia asn sementes para as culturas, era chegado o momento de retribuir. Uma parte das colheitas e a totalidade das sementes recebidas. Era o tributo a pagar pelos camponeses.
Mais uma vez o senhor Chefe dizia estar a ser enganado. Era sempre assim.
As sementes não estavam a ser devolvidas na totalidade e mais uma vez os agricultores ficavam em dívida.
Já bem bastava o imposto, não se sabia de quê, e que eram obrigados a pagar.
Foi por isso que um dia a aldeia acorreu ao posto com a notícia; o homem tinha mesmo cortado o seu próprio braço com um machado, num acto de desespero, não podia pagar o imposto.
Valeu-lhe a cadeia e ter na mesma de o pagar. Tempos que passaram naquela povoação do Umpulo, constituída apenas pelo posto que se erguia imponente defronte a uma das duas únicas casas colonias, com o seu comércio agragado.

O rio da cidade - IV

Corria o ano de sessenta e cinco.
A vida das pessoas mudou-se para a cidade. havia lá também agora um rio onde se podia tomar banho.
Só que lá, a água era parada. Não se podia lá lavar a roupa, as pessoas amontoavam-se e só tinha cimento à volta.
Tinham feito nascer a piscina.
Para mim, este rio era muito mais feio e tinha razões para o pensar.
Nunca mais podia apanhar os meus tolens-tolens, e neste rio eu não podia banhar-me de cuecas ou de combinação. Tinha que usar uma farda especial, um fato-de-banho que eu ainda não tinha.
Assim, limitava-me a olhar para as pessoas deliciadas mas cerimoniosas a saltar para a água.
Os militares que com esta farda só se conheciam pelas brincadeiras para impressionar as meninas rosadas do liceu.
Faziam-me pensar enquanto os apreciava agarrada à mão do mano que não me largava, olhando através das pernas dos grandes, e alguns cipaios que nos empurravam, as grandes torres humanas e piruetas que faziam no grande tanque, os risinhos das meninas, e percebia que aquela alegria era mesmo de pessoas que nunca tinham conhecido o nosso rio.


Abril / 1985

O nosso rio escondeu-se - III

Durante anos foi assim, mas parece que a Mãe Natureza se zangou connosco.
Só sei que aquele lugar começou a ser habitado por muitas cobras e depois de alguns sustos toda a gente começou a deixar de lá ir. Era assim que parecia.
O rio de repente começou a esconder-se.
Primeiro, um imenso tapete verde de capins ameaçou crescer e acabou cobrindo a ponte, depois todo o rio. As canas e capins altos acabaram por ficar a viver para sempre nas suas margens cerrando a passagem. A nascente ficou completamente inacessível não se deixando sequer ver encoberta pela densa folhagem.
Foi assim que o encontrei da última vez que por lá passei a caminho da praça.
Espreitei a pedra junto à ponte e estava completamente submersa nas águas doces e calmas. O nosso rio escondeu-se
Acabara-se para nós o nosso rio. Descobri a razão mais tarde.

Vamos ao rio - II

Para nós era o rio. Não tinha nome e sabíamos que o podíamos voltar a encontrar lá mais ao longe, para os lados da cerâmica, bem mais violento, perto da Embala onde morreu, dizem que corajosamente, por orgulho, o homem de pedra que está ao pé da Câmara Municipal junto à Igreja e que foi dar o novo nome à minha terra.
Era no rio que íamos lavar a roupa. Levávamos uma grande trouxa e podíamos lá ficar toda a manhã, ou toda a tarde.
Eu, é claro, não parava quieta com a água a dar-me já pela cintura, com a minha combinação fina a colar-se ao peito e em baixo em jeito de pára-quedas a boiar, deliciava-me a apanhar tolens-tolens, era assim que chamávamos aos girinos.
Atravessando uma peqquena ponte e descendo pelo lado esquerdo bem assim como na nascente havia uma pedra que parecia ter sido talhada de propósito para esfregar a roupa até a deixar limpinha. A água sempre a correr também se encarregava disso.
Com sorte podia por vezes lavar uma pecinha de roupa. Punha-me de joelhos, prendia a saia entre as pernas e baixava-me para o rio igual aos crescidos. Segurava firme a peça entre as mãos com os braços estendidos para a água fresquinha, alternando com pancadas desajeitadas sobre a pedra lisa.

O nosso rio - I

O rio ficava, podia-se dizer, mesmo ao fundo do nosso quintal.
Nessa altura ainda não tinham murado o nosso bairro.
Assim, podia-se considerar toda aquela extensão das traseiras da nossa casa. Depois descendo um bocado aquela ladeira onde se estendiam umas boas lavras de milho, até darmos de encontro com aquela torrente de água límpida e fresca que nascia lá mais atrás, rasgando as pedras que sem lamentar largavam das suas entranhas as irrequietas águas que alimentavam o regatito, depoius o rio que ía dar ao Kuito e depois ao grande Kuquema.

Uma montra de sonho - IV

Chegou a hora de abrir os presentes.
Eu pus-me a imaginar, e só via aquela caixa rectangular no meu sapado bem engraxado.
Eis que diante dos meus olhos estava qualquer coisa como uma montra de sonho.
Neste natal só os rapazes e eu tinhamos prendas. A mana já era crescida, uma senhora. Era assim.
Para eles luziam dois D. Elviras novinhos em folha, vermelhos, com guarda-lamas em preto. A mãe dispôs os brinquedos de tal forma que os tornou fantásticos aos nossos olhos. Rapidamente procurei a minha caixa, afinal eu já sabia, mas no seu lugar um serviço de chá em miniatura, mesmo de louça, decorado com bonequinhos esperava-me reluzente.
Saltei de alegria. Abracei-me ao pescoço da mãe. Sentia-me leve, por momentos julguei-me a voar...
Neste ano de 67 não se desfizera a magia de Natal.

Abril/1985

um presente de culpa - III

Que era a mãe e o pai que nos davam os presentes, até aí já eu há muito tinha chegado. Só que no fundo me alegrava ver a hora de sentir os olhos de todos pousados em mim na hora de os abrir. Era a alegria dos crescidos ao pensar que a sua magia do segredo do natal tinha resultado. E eu, eu fazia a minha parte, desde mesmo a carta ao menino jesus.
Agora, sentia no peito aquela dor da culpa a morder.
Vi mesmo nos olhos da mãe que ela já me tinha apanhado. Descobriu mesmo que eu vi tudo.
E aí, pensava cá comigo, já não ía ser a mesma coisa. Eu já sabia. Vi a caixa. Já não vai ter graça nenhuma! - bolas, porque é que tinha que ser assim?

O meu presente - II

Desta vez não havia sonhos, bem bolos, nem a carne assada nem o bacalhau que entrava na casa de uma vez e entranhava o ambiente aquecendo-o de esperanças de fartura o ano inteiro.
A tradição colonial adaptada não podia nestes dias ser revivida mas a mãe fez questão de não esquecer mesmo assim os presentes para os mais novos.
E foi aí que aconteceu uma coisa engraçada, o meu presente ficou sem querer esquecido na cozinha.
E eu, que passava por todos os buraquinhos, vi-o, claro. Então apercebi-me do que se tratava. Esgueirei-me para a sala e senti que a mãe me loançou aquele olhar. Ela adivinhou a minha decoberta. De seguida, pediu ao mano mais velho que fosse devolver a caixa que estava na cozinha à vizinha do lado. Assim alto, de forma a que eu ouvisse bem.
Eu sabia o que a mãe me queria esconder. Aquele era de certeza o meu presente. Só que naquela altura aquela descoberta tinha-me criado um sério problema.
Ao invés de sentir o gozo de ver a atrapalhação dos crescidos ao perceberem que eu tinha descoberto o seu segredo, senti-me antes culpada por o ter visto...

A Magia do Natal - I

Respira-se um ar diferente.
Não havia o tradicional cedro com fitas de cor ou os cheiros vindos da cozinha.
O ambiente de festas era dado pelo reencontro, pelo estarmos juntos.
Esta seria a última vez.
Dái para frente naquela casa em todos os natais lembro a mãe, cabeça baixa encostada ao balcão de pedra da cozinha a apertar contra o colo a terrina da massa dos sonhos com as lágrimas silenciosas a rolarem-lhe pelas faces. Havia um lugar vazio na mesa. Perdera-mos tragicamente o nosso mano mais velho.

A Chegada - VII

O Dondo era a próxima etapa. Fazia, a avaliar pela temperatura que estavamos perto da cidade grande e do mar que só habitavam nos nossos sonhos e onde nos esperava o pai.
Em vez da euforia, uma alegria contida e á mistura um pouco de desilusão pairava no ar. A conversa dos pais mostrava que as coisas não tinham corrido assim tão bem para o pai. O magro salário mal dava para a renda da casa. Estava diante de nós tudo o que o pai tinha podido arranjar apenas a casa nova e a gerande vontade de nos ter com ele. Faltou-lhe a coragem de o admitir antes à mãe pois sabia que ela não teria vindo e muito menos arrastado as crianças com ela.
Corria o final de 67 e faltavam três dias para o Natal.
Estavamos juntos na casa nova, nua, chão de mosaicos de cores, a cozinha estreita e as janelas grandes que davam para o imenso quintal, como eu o via, onde se erguiam em direcção ao sol dois elegantes mamoeiros, a velha mandioqueira que iria ser uma grande companheira e confidente amiga, a esquia mangueira que seria cúmplice nas brincadeiras do pantufa o saguim brincalhão e a jovem goiabeira, completavam o cenário.
A mãe respirou fundo. Havia muita coisa a fazer.
(Abril de 85)

A Viagem - VI

Partimos numa madrugada.
A baiana por mais que insistíssemos recusou-se a acompanhar-nos. Parecia adivinhar que não voltaríamos à terra fresca e fértil do planalto onde o sol havia muito que tinha deixado de nascer para todos.
Desta vez não se tratava de ir ir visitar a tia ao Umpulo ou a Camacupa. Passamos muitas matas, lavras e cafezais. Rios, ñaras e sanzalas eíam desfilando na imensa paisagem.
Numa tarde diluviana foi com ramos e paus e a solidária dos mão dos camponeses que levantaram o camião, que dançava sem sair do mesmo lugar no rio vermelho espesso e pegajoso amanteigado, onde estava atolado quase até à barriga.
Estafados íamos subindo rumo a norte. Começávamos a asfixiar naquele compartimento exíguo da cabine onde já não tinhamos posição, embora com os saltos do caminho irregular fosse-nos sem querer mudando de um lado para o outro quase aos empurrões que só não tinha força para arrancar a mana que estava embrulhadinha colada aos braços da mãe.
Foi com alívio e alegria que tive ordem de soltura quando a mãe me deixou ir lá para trás para a carroceria onde estavam os manos mais velhos e a minha prima irmã, e onde já podiamos descalçar os sapatos e sentir o vento.

A carta - V

Um dia, chegou a carta do pai. Percebi o significado quando os manos se juntaram a mãe na arrumação das wimbambas.
Parece que as coisas tinham melhorado. Tinha arranjado casa. Tinha-a mobilado, e pedia à mãe que fossemos todos ter com ele.
À mana mai velha cabia tratar das transferências da escola. Não havia mãos a medir. A mãe de serrote na mão entre tábuas para encaixotar parte das coisas que era possível levar, e pedaços de papel pardo para embrulhos tentava enxotar a baiana que não parava aos saltos a latir à sua volta tentando adivinhar o que se passava. estava tudo num reboliço como se vivessemos um sonho em que o vento desmontava todos os galhos e penas do nosso ninho.

o lentchope - IV

Lentchope. Desconfio que foi a mãe que inventou o nome.
Ele traz consigo o adocicado das tardes despreocupadas e preguiçosas.
Os manos ainda não tinham chegado da escola, ou estavam mesmo quase a chegar.
sentia a mãe de volta do fogão fazia chegar ao quintal o delicioso cheiro do milho que borbulhava numa calda leitosa de açúcar. Chamava-me e eu interrompia a brincadeira e ajeitava-me no degrau junto dela e ficávamos as duas a saborear o suculento caldo doce na caneca de aluminio a transbordar. Era o lanche quando ela tinha que inventar a falta do pão. O nome requintado também o inventou quando eu não parava de perguntar o nome do pitéu. Para mim até hoje é o lentchope.

manjares especiais - III

Para ser ainda mais especial o banquete não era na sala. A mãe convidáva-nos a viajar até ao quarto. Aí, sentávamo-nos na cama, os mais pequenos já com os pratos na mão. E assim aguardávamos a comida que estava a chegar à boleia do cheiro que já há muito vinha até às nossas narinas e apertava mais a dor no estômago vazio e punha a cabeça tonta. mas logo logo chegava, e entre risos e brincadeiras permitidas a mãe punha os talheres de lado e ensinava-nos a velha arte de bem comer com a mão.

O Cheiro do Sul - II

Da Oliva de pedal sairam muitas fraldas do pano de lençol branco de muito corar, camisas de flanela resguardos, e tiras para ligaduras. O tempo estava a acabar.
O dinheiro não dava para ir às lojas do centro da cidade.
A mãe nunca se queixava. Quando alguém vinha da capital, a mãe mandava o mano mais velho a correr ver se havia alguma coisa para nós. Numa altura correram três meses sem que pudesse trazer o envelope e ele quase não conseguia encarar a tristeza nos olhos grandes da mãe.
Ela apesar de tudo, tinha o condão de transformar cada refeição numa festa.
Nesta altura a lenha já tinha ficado para trás. Agora só servia o forno do pão do quintal. O fogão a petróleo cumpria a sua obrigação.
Bo qui tam, bo qui tam, Bo qui tam...
era dar a bomba, e as chamas lambiam o fundo das panelas e envolviam todo o seu corpo a e água do pirão já fervia. O uelelua estava pronto a receber a fuba amarelinha acabada de sair do tchiné, ainda morno da pancada. A kanine branquinha dos pacotes fomos conhecer na cidade grande.
Ao lado estava o asssistente. O velho fogareiro com os olhos vermelhos das brasas a sair do negro do carvão onde repusava a grelha do chouriço ou peixe seco que sairia acompanhado do molho candimba, o sábio e gostoso preparado de tomate e cebola que rematava o manjar.

A Casa Nova - I

Estávamos na casa nova. Aliás, ali para nós tudo era novo. A casa, a rua, o bairro, a cidade, as pessoas.
Na casa, paredes nuas, percorremos em silêncio a sala vazia, depois os quartos. Num deles, no do meio, uma trouxa de roupa a um campo. era a roupa do pai. Havia uma camisa nova de quadrados grandes. Achei-a mesmo linda!
O pai tinha vindo para a cidade grande com a cabeça cheia de sonhos, fazia já quase um ano. Tinha deixado a mãe e nós os quatro, ou melhor, cinco, pois tinha deixado a pequenina ainda a crescer dentro da barriga da mãe.
Ela ainda nasceu no sul, num bairro da periferia, rodeado de cedros e eucaliptos.
Lembro-me bem daquela época. De ficar horas e horas encostada à máquina rouca de costura alugada, seguindo os movimentos da mãe que se encaixava nela muito concentrada. Ela tinha a mana enrolada quase no meio das pernas que não paravam, num ritmo incessante que acompanhavam o matraquear do engenho.

dava tudo para ver a senhora professora a pintar loengos, lombulas e matúnduas... - V

Apressei-me, só que o meu verde não resultou nada bem. Por cima das outras cores ficou mesmo muito feio!...
A senhora professora levantou-se, passeou-se outra vez por entre as filas, palavra que parecia mesmo um felino.
Olhou os nossos trabalhos e comentou entre dentes com ar de quem é o senhor pendurado na parede; - a prima é melhor no desenho...dás melhor pras contas.
Olhei-a e pensei cá para mim, eu até pintar pintava... até gostava mais do desenho que a a Guigui. Mas como é que ela podia adivinhar que eu nunca tinha visto aquele fruto?
Lá fora na algazarra do recreio a Guigui contou-me que havia verdes e amarelados também. Vinham em caixas da metrópole e da África do Sul. mas eu é que também não podia adivinhar não é?
Sorri. Vendo bem as coisas, afinal eu não era tão estúpida!...
Dava tudo, mas tudo naquele momento, para ver a senhora professora a pintar loengos, lombulas, lomoinhos, matúnduas, lochas...
Esses, nestes tempos de 66, nem nas caixas do puto, nem mesmo lá na praça grande ela ía encontrar.
Só mesmo no mato, ao descer para o rio, no caminho para a gare ou para a cerâmica.
Então aí, aí é que eu queria ver!...
(Março 85)

Ela não gostara nada do vermelho... - IV

Senti com que um baque no peito. os olhos encheram-se-me de lágrimas.
Ela não gostara mesmo nada do vermelho.
Olhei então a minha folha. vendo bem, o fruto parecia-me mesmo o abacate, mas eu tinha a certeza que não era...
Portanto, excluindo o verde, o arroxeado, o meu azul e o vermelho que cor teria?
Já não sabia o que fazer. Pensava no fruto de todas as cores. Amarelo, castanho, cinzento até. Como seria?
A prima Guigui estava mesmo atrás de mim. Já tinha terminado o trabalho. Inclinou-se um pouco para frente e sussurrou-me então, sujeita a ficar de castigo: - É verde, não sabes que é uma pera?...
Respirei fundo, agradeci-lhe do fundo do coração.
Afinal era isso; verde, uma pêra!...

E agora é que são elas! - III

Eis quando a senhora professora parou e se dirigiu a mim. Fiquei expectante; afinal o que treria eu feito de mal? Apontava aquele fruto. Ali havia asneira de certeza!...
A turma toda se virou na minha direcção. Comporeendi então que era por causa da cor. Da cor do fruto. Mas afinal o que tinha o meu azul? era tão bonito...não sei porque reclamava... Bem, pensei eu cá com os meus botões, eu facilmente podia remediar. Fechei os olhos, mas escusado... não conseguia lembrar da cor. E o pior, é que nem do fruto...
Rapidamente, peguei no vermelho, por certo iria ficar bem, uma cor tão alegre!...
Carreguei um pouco, mas com cuidado, tinha que disfarçar o azul. Realmente o vermelho dava muito melhor efeito. Sem dúvida!
A seguir levantei-me, e orgulhosa fui mostrar o resultado do meu trabalho.
Agora era ela que ficava vermelha de raiva. Chamou-me estúpida e e nem sei que mais, e ainda que, nem que ficasse ali durante todo o intervalo do recreio, "tinha que pintar em condições"!

Umas pinceladas - II

Segurei com firmeza no lápis; decidi-me pelo laranja. Aquela ali ao canto, olhava mesmo para mim; redondinha, pedindo-me que a não esquecesse. seguiu-se o amarelo para doirar as bananas e pincelar mais o verde o mamão.
Ainda com o amarelo mais um pouco de castanho fazia o tom do duro mas suculento maboque.Para a manga o avermelhado. Mas, havia um outro, um pouco esquisito, mas por certo ficaria lindo lindo, com o meu azul.
Terminado o trabalho e enquanto a senhora professora ía desfilando por entre os "cordões" de alunos, eu escarrapachei a minha folha mesmo ao centro da carteira orgulhosa da minha obra.
Estava pronto.

qual é a cor, qual é ela? - I

E as coisas começaram, quando a senhora professora entregou aquelas folhas grandes com desenhos de várias formas para colorir.
Fez as recomendações do costume; sobretudo, não pintar para fora dos contornos!
Era a paragem; depois do hino, da oração e das contas.
Era sempre uma alegria. finalmente, podíamos pegar nos nossos queridos lápis de cor afinal era para isso que a mãe tinha que pagar a caixa escolar que os incluía. E como que por magia, podíamos encher de cores aquelas formas rígidas que se erguiam na folha da sebenta. Era como dar-lhes vida!
Desta vez eram frutos que todos conhecíamos muito bem.
Na minha imaginação, já os via conmo em todos os sábados. Quando, pela mão da mãe assistia ao movimento da praça grande, onde eles estavam. Ora empilhados em quindas redondas, ora estendidos preguiçosamente nas esteiras, à espera de alguém para os levar.
Bem, detsa vez era eu que lhes ía dar o colorido que fazia da praça a grande festa.

os pedaços de memória

Gostava de poder dar a conhecer alguma coisa da minha infância, da minha terra, do meu povo.
Ao meu alcance, estavam documentos vivos, est+rias, vivências dos que me rodeavam; - meus avós, meus irmãos, de mim própria.
Todos tínhamos alguma coisa para contar. Para lembrar, para não esquecer.
Estórias verdadeiras, tantas vezes contadas, repetidas, à volta da mesa. A conversa aquecia, e lá estávamos nós viajando por lugares, reencontrando pessoas, revivendo situações.
E foi assim que surgiram estaqs estórias e outras surgirão.
Estórias verdadeiras de memórias paridas