eu vou com as aves

Ontem falávamos de coisas nossas e tu com algum pesar, da minha preocupação por ti.
Eu dizia da tua impulsividade... que só não queria que te magoasses...
E tu tentavas da melhor maneira dizer-me qualquer coisa como o que disse o Eugénio de Andrade. assim o senti e hoje o mano fez questão de me lembrar pelas suas palavras...

Aqui vai da tua voz que eu ouvi nas palavras de Eugénio de Andrade


Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

o cafezal

Ainda dormente do peso de dor mansa de ti mãe
Recebi o recado em forma de verde com pinceladas de rubro
Um manto doce em que se adivinha o quente negro de terreiro
a inalar um forte odor de doces memórias.
Assim nasceu o espaço.
Trouxe-me o filho embrulhado em registo quase sacro reflectido no brilho dos olhos quando se me acercou para perguntar:
- Mãe já foi ao cafezal?
Caminhei em direcção ao espaço com a pressa da medida da sua ansiedade
e assim o encontrei já verde e com pinceladas de rubro, pois já tinhas semeado
memórias de fruto.
Dei por mim a preenche-lo no campo, no terreiro, torrefacção, moagem, até ao quente das mãos da caneca bem segura a fazer transpirar o ar, ébrio de cheiro.
Muitos nossos farão parte.
Assim cresça e não se perca o espaço e a memória.